ARTIGO | São Vicente e Santa Luísa – Reavivar o fogo do nosso servir

Na história de suas vidas, suas cartas e conferências, Vicente de Paulo e Luísa de Marilac aparecem como pessoas normais com suas fragilidades e caris­mas, porém capazes de conseguir grandes graus de santidade. Mostram de forma extraordinária como o poder da Graça pode transformar vasos frágeis de argila em instrumentos eficazes do projeto divino.

Vicente foi um jovem aventureiro vindo da roça que buscava constantemente horizontes mais amplos. Alimentou ambições para uma promoção social através do ministério sacerdo­tal para ajudar à sua família que tanto amava. Dotado de uma grande facilidade para estabelecer relações com todo tipo de pessoas, pobres e ricos eclesiásticos e políticos, nobres e plebeus, homens e mulheres, religiosos e leigos. Mais tarde ele usaria deste dom para uma boa causa: realizar o seu sonho de servir aos pobres. Homens de nosso tempo, que buscam constantemente “algo a mais” na vida, podem encontrar valores na vida de Vicente.

Luísa, que nasceu e cresceu em meio a sofrimentos, não se deixou desanimar por eles e se lançou a perseguir os objetivos que tinha traçado para a sua vida. Foi uma boa esposa, uma mãe sempre preocupada com seu único filho. Tendo descoberto a vocação de sua vida com a ajuda de Vicente, converteu-se em sua amiga fiel e colaboradora. Juntos, fundaram as Filhas da Caridade, um caminho radicalmente novo de viver a vida consa­grada feminina em seu tempo.

Ainda hoje são muitas as mulheres — religiosas e leigas, solteiras, viúvas e casadas — que encontraram em Luísa um modelo inspirador, um modelo que finalmente “deu certo” não obstante as limitações impostas pelo nascimento, pela natureza e as cir­cunstâncias.

Passou o tempo, e Vicente e Luísa continuam a impactar e a inspirar gerações. O fogo de sua caridade ainda permanece acesso e aviva muitos outros. Converte o passado num pre­sente vivo que transforma.

Eles se atreveram a sonhar…

Durante suas vidas, Vicente e Luísa perseguiram com paixão implacável o sonho no qual acreditavam, e que era como um fogo que os consumia. Sonharam em se entregar plenamente para seguir a Jesus evangelizando e servindo aos pobres de seu tempo. Este sonho foi como a Estrela Polar que guiou cada decisão que tomaram e cada passo que deram.

Vicente e Luísa, porém, não nasceram com este sonho. De fato, tinham outros sonhos quando jovens – sonhos como todos nós temos. Na medida em que iam realizando os primeiros sonhos, percebiam que estavam constantemente deparando-se com desgostos, fracassos, reviravoltas, mudanças inesperadas, como se uma mão invisível estivesse presente no caminho de sua realização.

Progressivamente, Vicente e Luísa descobriram o significado destes acontecimentos que pareciam apartá-los da realização dos seus sonhos. Na verdade, não eram senão os caminhos misteriosos de Deus para lhes revelar a vocação de suas vidas. Vicente e Luísa permaneciam abertos a esta revelação e se deixavam guiar pelo Espírito.

Tanto Vicente quanto Luísa viveram atormentados com profundas dúvidas de fé durante algum tempo: dúvidas que se convertiam em verdadeiras “noites escuras” para eles. Todavia, uma experiência iluminadora para Luísa e uma firme resolução de Vicente de servir aos pobres mudaram o curso de suas vidas. Desde esse momento em diante, Deus foi o seu absoluto. Deixaram de lado os seus primeiros sonhos para seguir o chamado de Deus… um chamado que se realiza através de acontecimentos e pessoas. Uma vez no caminho, Vicente e Luísa nunca voltaram a olhar para trás.

Numa época de guerras intermináveis, provocadas por motivos reli­giosos e políticos, e de uma pobreza que desafia a imaginação, Vicente e Luísa atreveram-se a sonhar… um sonho aparentemente impossível. Mas, guiados e apoiados pela Providência, com os dons extraordinários com que a natureza os tinha enriquecido tão generosamente, e com a benção das circunstâncias, o sonho de Vicente e Luísa aos poucos foi tomando forma: as Damas da Caridade (hoje a AIC, Associação Internacional de Caridade), a Congregação da Missão e as Filhas da Caridade.

Enquanto perseguiam seu sonho com firme convicção, Vicente e Luísa iluminaram, sem ter conscientes disso, novos caminhos que contribuíram significativamente na renovação da Igreja e da sociedade do século XVII na França e fora dela.

Manter vivo seu sonho hoje…

Ao lembrar Vicente e Luísa, estamos agradecidos pelo carisma que Deus lhes deu, carisma que como fundadores transmitiram à Família Vicentina como um dom à Igreja e ao mundo.

Fidelidade criativa é o outro rosto da gratidão pelo dom de Vicente e Luísa. Esta fidelidade nos remete às origens da história Vicentina… nos convida a ler o presente à luz do seu sonho… a reler seu sonho à luz do momento atual.

Se Vicente e Luísa estivessem hoje entre nós, como estariam lendo a situação atual à luz do Cristo que queriam seguir? Quais palavras nos diriam? Como responderiam às novas situações com as que nos enfrentamos hoje? Que opções fariam?

O nosso mundo é radicalmente diferente em muitos aspectos ao mundo de Vicente e Luísa. Novas perguntas nos pressionam. Num mundo que tem experimentada a violência da pandemia que acaba gerado novas formas de pobreza, novos rostos de pessoas pobres, quais e quem devem ser as nossas prioridades? Vicente e Luísa estiveram constantemente atentos aos acontecimentos como “lugares” para o encontro com o Espírito. Num mundo obcecado pelo “instante” e o “extra rápido”, e que se apresenta egoísta, amedrontado, como devemos agir para estar realmente atentos e discernir?

O nosso mundo pós-pandêmico almeja ser mais inclusivo, ir além das fronteiras de raça, etnia, classe, gênero e religião. Em concreto, que implica isto nas nossas obras entre os pobres… para nossa colaboração?

Nosso mundo tem se tornado mais e mais secularizado, girando sobre si mesmo… e que agora perde todos seus parâmetros de segurança, parece voltar agora com uma preocupação social, abrindo-se as pessoas num resgate por solidariedade e justiça social. Quais os desafios que isto representa para nosso serviço Vicentino, onde a visão de fé e a motivação da caridade são primordiais?

Vivemos em meio a uma inaudita crise global… moral, cultural, econômica e espiritual e agora também de saúde com uma projeção de novas formas de pobreza e exclusão. Que releitura faríamos do sonho de Vicente e Luísa à luz desta realidade?

O Povo de Israel fez uma releitura da sua Aliança com Yahweh desde a pers­pectiva da crise experimentada durante o exílio. Agindo desse modo, redescobriram o significado de sua identidade como Povo de Deus. Vicente fez a releitura do Evangelho desde sua experiência do pobre e a confusão que ameaçava destroçar a sociedade e a Igreja de seu tempo. Neste sentido, ele descobriu a sua vocação na vida e gerou um sonho que marcou profundamente seu tempo.

Progredindo juntos… 

Somos herdeiros(as) de um grande legado… filhos e filhas de dois grandes profetas da caridade. Esta herança comum nos orgulha. Nossos vínculos se entrelaçam. Com um grande número de membros em todos os continentes, nós, como Família Vicentina, temos um grande potencial para estabelecer um diferencial em nosso tempo, como Vicente e Luísa o fizeram no seu.

Temos os “genes” de Vicente e de Luísa. Temos seu coração e seu espírito. A fidelidade ao seu legado nos insta a progredir juntos… para ser profetas da caridade no mundo atual. A realidade global de hoje exige testemunho coletivo. Nos resta a ser não simplesmente profetas individuais, senão uma “família de profetas”.

Num tempo no qual a injustiça tem assumido uma dimensão glo­bal, o sonho de Vicente e Luísa nos impulsiona a desenvolver redes de caridade. Redes de caridade atentas aos acontecimentos e aos pobres, criativas e audaciosas nas suas respostas, que manifestam a novidade perene do carisma Vicentino. Elas criam ondas de esperança para o futuro.

“E seguro que quando a caridade mora numa alma, toma posse de todas as suas potencias; no lhe dá descanso; é um fogo que está constantemente ativo; una vez que a pessoa está infla­mada por ela, esta a mantém enfeitiçada” (SVP, Repetição de Oração, 4 de Agosto de 1655).

“Por favor, continuem a servir aos nossos queridos mestres com grande delicadeza, respeito e cordialidade, vendo sempre neles a Deus” (SLM, Carta 361, Junho de 1653).


Padre Ilson Luis Hübner

Congregação da Missão

Diretor Nacional da JMV Brasil