ARTIGO | O carisma vicentino e a JMV: perspectivas frente a pandemia

Foto: Sarah Teófilo (@sarah.teofilo)

Na Semana da Pátria, como costuma-se chamar a semana nos primeiros dias do mês de setembro, uma imagem postada nas redes me fez refletir: um grupo vestido de verde e amarelo em caminhada com bandeiras do Brasil, em ato bem cívico. O fotógrafo captou a imagem justamente no momento em que passam ao lado de uma pessoa caída e nitidamente mostra um casal indiferente àquela pessoa ao chão… Como se não tivesse nada ali.

Apesar de ser postada numa semana em que o “patriotismo” está “à flor da pele”, onde se grita” por “independência” e uma pátria justa e outros gritos de ordem, a imagem revela uma insanidade. Como gritar por um país mais justo, sem encarar a injustiça latente?  Uma cena que se tornou corriqueira. Todo dia nos deparamos com o crescente contingente em situação de rua, e, agora agravados nos últimos meses de Pandemia.

A cena relatada me remeteu a uma das parábolas de misericórdia apresentadas no Evangelho de Lucas (10,25-37) e logo me veio a pergunta: “Quem é o meu próximo?”. Essa Parábola nos interpela como vicentinos e vicentinas.  Confesso que as vezes nos sentimos impotentes diante do batalhão de “caídos na estrada”, mas é sintomático quando não “sentimos”, quando a apatia e a indiferença tomam conta de nós e que nem se quer trazemos à nossa oração essas vítimas. Devemos ser vigilantes para que essas cenas, mais frequentes do que imaginamos, não se tornem para nós paisagismos, ou seja, não contribuirmos para que esses seres humanos de dignidade subtraída e direitos negados se tornem invisíveis.

Quando nos anos 1980 nossa Associação assumiu a São Vicente como seu patrono, passando de JM para JMV, mudou a perspectiva e sua ação alargou os horizontes em vista de uma maior alteridade. Não que o “M” já não traga em si esse olhar para o outro, mas só o Marial, como se chamava na época, apenas enfatizava um aspecto de Maria: mais oracional; e não se aprofundava a Espiritualidade do Magnificat. E lembro muito bem que éramos conhecidos como o grupo das irmãs (confesso que isso me incomodava porque desejava algo mais). Então descobrimos que Vicente sempre esteve lá. Nossa origem não teria acontecido se ele, ouvindo o apelo de Deus não tivesse fundado a Companhia das Filhas da Caridade, pois a portadora da Mensagem, Catarina Labouré, era noviça da Companhia.

Esse Carisma precisa sempre ser revisitado, quadricentenário e contemporâneo. E nós da JMV somos convocados a sermos artífices dessa atualização do Carisma.

A Pandemia do novo coronavírus revelou as feridas abertas do mundo: potencializou os abismos já crescentes entre a parcela da sociedade de regalias e os desprovidos de dignidade e, ao mesmo tempo, descobrimos que estamos no mesmo barco, somos “barro”, mesmo que da maneira mais dolorosa tivemos que compreender o destino comum de toda humanidade.  A Pandemia também converteu muitos corações: quem aproveitou a oportunidade cresceu em humanidade. Muitos grupos se prontificaram a sanar a necessidade primária: a fome. A Família Vicentina uniu esforços para efetivar sua ação.

E nós da JMV? Como estamos processando tudo isso?

Somos chamados a sermos Samaritanos para resgatar a humanidade caída e não passar ao largo, e, isso exige de cada um ir ao encontro do outro. Como nos diz o Papa Francisco na Mensagem para o dia Mundial das Comunicações de 2021: “Vinde e verás (Jo 1,46) – Comunicar encontrando as pessoas onde estão e como são”.

Em muitas realidades nossos grupos precisaram se reinventar e ainda estamos nesse processo de reconstrução. Uma coisa é certa, a massa de excluídos aumentou.  Precisamos ter dois olhares: um voltado para dentro de nossa Associação: em muitas realidades nossos membros estão, muitas vezes, na mesma situação de vulnerabilidade de nossos “assistidos”, precisamos ter essa sensibilidade para cuidar dos nossos. E um olhar para fora: ir para as realidades de abandono. Não apenas para prover as necessidade básicas mas ir além resgatar a dignidade, colocar em prática o que refletíamos sobre “Mudanças de Estruturas”. Cobrar dos órgãos competentes soluções. Muitos de nossos grupos retomaram e potencializaram  a ação junto aos pobres e excluídos; uma ação ousada com destemor colocando em riscos suas próprias vidas nesse tempo assolado pela Pandemia.

Nesse tempo, o Conselho de São Vicente é bem real, “Devemos ir aos pobres sem nos perder a nós mesmos”. Isso vale para todas as dimensões: humano-psico-social. Perdemos alguns, mas como diz uma antiga canção: “o sangue dos mártires faz a semente se espalhar…”
Somos chamados a olhar para São Vicente e nos perguntar o que ele faria hoje? Afinal a Paris do século XVII vivia assolada pela peste e ele não mediu esforços para agir. A Pandemia nos desafia a exercitar o Carisma com criatividade buscando se reinventar na certeza de que “o que Deus guarda é bem guardado. É justo que nos confiemos à sua adorável Providência”. (SVP).


 

Antônio Júnior

Província do Recife

Publicitário e membro da Comissão de Formação da JMV Brasil